O paradoxo da existência humana é um objeto central da obra de Søren Kierkegaard [1813-1855]. O homem, uma “síntese do espiritual e do físico” é um animal que, ao ser confrontado pela sua finitude, é capaz de imaginar e se voltar ao infinito, ou seja, busca transcender o físico. A consciência da própria morte angustia o indivíduo, pois foge completamente de seu controle. O custo que pagamos por esta consciência está evidente na história bíblica da Queda, onde Adão e Eva decidem comer a fruta da sabedoria e são expulsos do paraíso. A Bíblia e o cristianismo são referências importantes na obra de Kierkegaard que era um cristão devoto, ainda que um crítico feroz da Igreja Nacional Dinamarquesa.

Para evitar o terror decorrente da eminência do seu aniquilamento, Kierkegaard aponta que o homem ergue uma série de estruturas, que Freud [1856-1939] chamaria de mecanismos de defesa quase um século depois. É de se espantar que Kierkegaard ganhe tão pouco destaque em uma graduação de psicologia, já que a organização da área como ciência permitiu que muitas de suas ideias sobre a condição humana fossem comprovadas clinicamente. No livro “A negação da morte” – vencedor de um Pulitzer póstumo – o antropólogo Ernest Becker descreve Kierkegaard como um pensador pós-freudiano.

As contradições e ilusões dos diferentes estilos de vida adotados com o intuito de “evitar o inevitável” são criticados por Kierkegaard através de um método que envolvia o uso de pseudônimos e ironia. Sócrates era seu principal modelo e, assim como ele, Kierkegaard queria que as pessoas chegassem às suas próprias conclusões, não havendo no autor uma tentativa de doutrinar seus leitores diretamente. 

Ao adotar pseudônimos, Kierkegaard assumia o ponto de vista de pessoas que exemplificavam os estilos de vida a serem criticados, expondo as armadilhas e limitações de cada visão de mundo. Isto abre a possibilidade de seus leitores não apenas entenderem uma ideia intelectualmente, mas serem capazes de relacioná-las às suas vidas. A abordagem indireta faz com que a crítica de Kierkegaard seja mais efetiva, já que um ataque direto às crenças centrais de uma pessoa dificilmente é bem aceita ou sequer considerada. 

O estudante de Freud certamente reconheceria o mecanismo de defesa da repressão quando Kierkegaard escreve sobre “confinamento”, inconsciente e desenvolvido em grande parte na infância. Se por um lado a repressão é fundamental para que uma criança seja protegida dos perigos da vida cotidiana, um confinamento que o autor chama de “equivocado” dá origem a um excesso de angústia e cria um adulto fechado a novas possibilidades e experiências. No outro pólo, um excesso de liberdade pode levar a um colapso da estrutura do caráter, o que a psicopatologia moderna chama de psicose. Uma ruptura radical entre o ego e o seu corpo torna a pessoa desancorada da vida cotidiana, incapaz de funcionar. O homem, portanto, deve escolher um caminho do meio entre excesso e ausência de possibilidades. Os extremos necessariamente levam ao desespero, seja da angústia da falta de possibilidades, seja da dissociação do ego no infinito.

A rejeição a um olhar crítico das armadilhas de suas visões de mundo leva ao “homem cultural automático”, uma pessoa inautêntica, incapaz de transcender os ditames de sua cultura e confortada por uma série de rotinas previsíveis. Para Kierkegaard, o homem cultural automático é o filisteu, o sujeito que vai a igreja e performa todos os rituais e sacramentos mas não anseia uma relação autêntica com o infinito – ou Deus.

Para Kierkegaard as maneiras de enfrentar a angústia podem ser resumidas em três estágios da existência: o estético, o ético e o religioso. No estágio estético, a pessoa vive no hedonismo, contornando o paradoxo da existência humana com distrações e prazeres. Kierkegaard entendia que essa era uma solução temporária, ineficaz no longo prazo. Esse estágio pode ser facilmente ilustrado pela vida de uma pessoa que, incapaz de lidar com suas dificuldades, busca uma solução no uso de algum entorpecente. É comum que sejam necessárias doses progressivamente maiores para obter o efeito inicial, ou até que a substância passe a apenas eliminar uma sensação desagradável de abstinência.

O estágio ético pode ser ilustrado pelo “homem cultural automático”, o filisteu ilustrado nos parágrafos anteriores. Ele acredita que o problema da existência pode ser resolvido à luz de algum tipo de tradição. É um idealista e acredita que todos os problemas são passíveis de resoluções racionais. Ele pode acreditar, por exemplo, no poder de uma ideologia para solucionar mazelas sociais ou na tecnologia como uma maneira de vencer a morte. Para Kierkegaard este estágio é derrubado quando a pessoa sofre um choque grande o suficiente para entender a precariedade de sua situação. Uma suposta objetividade racional não dá conta da complexidade do mundo. Os modelos formados pela percepção humana, por mais complexos que possam parecer, têm a limitação da capacidade intelectual humana. Confrontado com a angústia de que seus esforços são incapazes de solucionar a questão existencial, a pessoa tem duas opções: viver no desespero ou dar o que chama de “salto da fé” ao infinito, ou seja, passar ao estágio religioso.

A valorização de uma verdade existencial em detrimento de uma objetividade baseada na razão é um tema recorrente na obra de Kierkegaard. Isto não quer dizer que o autor despreze a importância de verdades objetivas sobre o mundo para questões práticas, apenas que este tipo de verdade é completamente indiferente à existência e incapaz de resolver questões morais e espirituais, como as descritas prodigiosamente no livro autobiográfico “Uma Confissão” de Liev Tolstói [1828-1910]. O autor russo, prestigiado e aparentemente bem-sucedido, passa por um vazio que o deixa próximo do suicídio. Aos 50 anos e com uma vida relativamente confortável, Tolstói sente que o secularismo ateu o falhou e ao mesmo tempo se sente incapaz de voltar a acreditar em Deus. Ao final de um árduo processo abandona o intelectualismo de seu círculos sociais e busca a sabedoria dos camponeses que vivem uma vida mais simples e espiritual.

Tanto Kierkegaard quanto Tolstói estão mortos e enterrados há muito tempo, e desde então tivemos avanços tecnológicos inimagináveis. Mesmo assim, a racionalidade continua sendo ineficaz para suprir a necessidade humana por transcendência. Quanto mais aprendemos sobre a realidade, maior é o nosso contato com o desconhecido, o proverbial infinito. Para Kierkegaard, não há como abarcar este infinito através de desdobramentos de conhecimento do tipo científico e é risível a ideia de que a ciência pode incrementalmente chegar a algum tipo de espiritualidade baseada na racionalidade. A única maneira seria através do salto da fé, onde o homem se divorcia da razão para se entregar ao infinito. Este é o estágio religioso, onde o homem desiste de buscar explicações e vive a graça de sua comunhão com o infinito.